Meu velho conhecido Flavio Pessoa enviou-me um reply a respeito do texto sobre o filme dos irmãos Coen “Onde os Fracos não têm Vez” – o último post, que segue mais abaixo (ou clique em https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/2008/08/23/digressoes-minhas-em-cima-de-digressoes-dos-irmaos-coen); se você não o leu, sugeriria que o fizesse antes de ler este aqui, e voltasse para cá depois. O comentário do Flavio diz respeito também a algumas divergências que já surgiram no nosso processo de adaptação de quadrinhos:
“Vc não acha que às vezes se preocupa em excesso com a veracidade? Não acho relevante o fato do cara virar de costas, por exemplo.”
Ele tem razão em parte. Se rende uma boa cena, é necessário que seja verossímil? Há uma reflexão sobre a questão no livro ‘Hitchcock – Truffaut – Entrevistas’, quando o mestre inglês relata ao colega uma cena em que pensou: um carro sendo construído numa linha de montagem, desde o motor, passando pelos diferentes estágios, ganhando carroceria, pneus, sendo pintado. Ao ficar pronto, abre-se a porta do veículo, e um cadáver penderia dele. Hitchcock gostava da cena, mas viu que não tinha como criar uma explicação para um corpo aparecer ali.
E ele não era exatamente o homem mais preocupado com realismo nos roteiros de seus filmes, especialmente na fase inglesa (pré-1940).
Mas não reclamo da falta de verossimilhança em uma fábula meio surrealista como “O Cheiro do Ralo”. Sobre este filme, uma pergunta óbvia seria: como aquela loja sobrevive se só vemos o personagem principal comprando coisas e nunca vendendo? Mas não cabe ali, pois o filme não tem um tratamento realista, fica meio naquele esquema do filme de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, “Delicatessen”.
Minha tréplica ao Flavio, a respeito de “Onde os Fracos não têm Vez”:
E um cara que conhece o deserto sair andando por lá sem água?
E um cara optar por usar uma arma de ar comprimido que com o cilindro incluído deve pesar uns quinze quilos – e é enorme, e recarrega-se só Deus sabe como – , quando poderia usar um revólver que pesa meio quilo e cabe no bolso?
Mas é claro, isto não é o principal problema do filme. Eu mesmo estava me apegando a estes detalhes para não confrontar o problema real. Sobre o que é “Onde os Fracos não têm Vez”? Sobre ganância? Sobre até onde as pessoas vão por dinheiro?
O personagem principal, Llewelyn, em dado momento ouve ao telefone uma oferta: o vilão não iria deixá-lo viver, mas, se devolvesse o dinheiro, deixaria a mulher do mocinho viver.
Bem, o acordo não vislumbrava nenhuma possibilidade de sobrevivência para o próprio Llewelyn – o psicopata foi categórico, Llewelyn TERIA que ser morto. Então Llewelyn não cede, compra a aposta. Mas a moça não estava em poder do vilão, e Llewelyn achou que: 1) era um blefe, 2) que ela, estando na casa da mãe em outra cidade, estaria a salvo, e 3) que ele poderia protegê-la. E também não tinha nenhuma garantia de que o psicopata iria cumprir sua palavra em relação à sua mulher – afinal, dá pra confiar num sujeito desses?
Então, a posição de Llewelyn neste ponto já não é exatamente de ganância, mas uma questão de tentar garantir sua sobrevivência – o psicopata já tinha o sentenciado a morte. Se num primeiro instante, ao procurar por um sobrevivente do tiroteio no deserto e levar o dinheiro para casa, Llewelyn agiu por ganância, já desde o momento em que voltou ao deserto para levar água ao traficante ferido ele mostrou outras motivações. E depois que os criminosos tiveram acesso à sua caminhonete e endereço, não tinha mais nada a fazer a não ser fugir – deveria ter contatado a polícia? Que garantia poderia ter de que iam agir corretamente com ele?
Esta questão da ganância me fez alugar o DVD de um filme que eu já não via há dez anos, o clássico “Contos da Lua Vaga” (1953), de Kenji Mizoguchi, este sim um filme sobre homens gananciosos que colocam seus relacionamentos e as vidas de suas mulheres em risco.
Mas em “Onde os Fracos não têm Vez”, a qualidade moral fica esvaziada. Até por que o vilão, o mais ambicioso e cruel de todos, vence.
Em outro filme dos Coen, o ótimo “Fargo”, perto do final a policial interpretada por Frances Mc Dormand conseguiu prender o seqüestrador – que acabara de executar seu parceiro e tentava se livrar do corpo jogando os pedaços num picador de madeira. E a policial sabia que pelo menos três outras pessoas tinham sido mortas pela dupla de criminosos. Enquanto dirige o carro, com o criminoso ferido na caçamba, ela fala a ele:
“Creio que devia ser o seu cúmplice lá no picador de madeira. E aquelas três pessoas em Brainerd. E por quê? Por um pouco de dinheiro? Há mais na vida do que isso, sabia? E aqui estamos nós, num lindo dia de sol…Bem… Eu não entendo isso…”
Falta algo assim para dar peso a “Onde os Fracos não têm Vez”. Ainda assim, um filme interessantíssimo.
Sobre o Flavio Pessoa: com os desenhos dele, há nessse blog adaptações para quadrinhos de Nelson Rodrigues (os contos de “A Vida Como Ela É”). Clicar em
https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/quadrinhos-o-grande-viuvo
https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/quadrinhos-humilhacao-de-homem
Para o primeiro artigo sobre “Onde os Fracos não têm Vez”, só descer um pouco mais a página, ou voltar ao primeiro parágrafo deste texto, e clicar no link que ali se encontra.
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