Um pouco mais sobre “Onde os Fracos não têm Vez”

agosto 30, 2008

Meu velho conhecido Flavio Pessoa enviou-me um reply a respeito do texto sobre o filme dos irmãos Coen “Onde os Fracos não têm Vez” – o último post, que segue mais abaixo (ou clique em https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/2008/08/23/digressoes-minhas-em-cima-de-digressoes-dos-irmaos-coen); se você não o leu, sugeriria que o fizesse antes de ler este aqui, e voltasse para cá depois. O comentário do Flavio diz respeito também a algumas divergências que já surgiram no nosso processo de adaptação de quadrinhos:

“Vc não acha que às vezes se preocupa em excesso com a veracidade? Não acho relevante o fato do cara virar de costas, por exemplo.”

Ele tem razão em parte. Se rende uma boa cena, é necessário que seja verossímil? Há uma reflexão sobre a questão no livro ‘Hitchcock – Truffaut – Entrevistas’, quando o mestre inglês relata ao colega uma cena em que pensou: um carro sendo construído numa linha de montagem, desde o motor, passando pelos diferentes estágios, ganhando carroceria, pneus, sendo pintado. Ao ficar pronto, abre-se a porta do veículo, e um cadáver penderia dele. Hitchcock gostava da cena, mas viu que não tinha como criar uma explicação para um corpo aparecer ali.

E ele não era exatamente o homem mais preocupado com realismo nos roteiros de seus filmes, especialmente na fase inglesa (pré-1940).

Mas não reclamo da falta de verossimilhança em uma fábula meio surrealista como “O Cheiro do Ralo”. Sobre este filme, uma pergunta óbvia seria: como aquela loja sobrevive se só vemos o personagem principal comprando coisas e nunca vendendo? Mas não cabe ali, pois o filme não tem um tratamento realista, fica meio naquele esquema do filme de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, “Delicatessen”.

Minha tréplica ao Flavio, a respeito de “Onde os Fracos não têm Vez”:

E um cara que conhece o deserto sair andando por lá sem água?

E um cara optar por usar uma arma de ar comprimido que com o cilindro incluído deve pesar uns quinze quilos – e é enorme, e recarrega-se só Deus sabe como – , quando poderia usar um revólver que pesa meio quilo e cabe no bolso?

Mas é claro, isto não é o principal problema do filme. Eu mesmo estava me apegando a estes detalhes para não confrontar o problema real. Sobre o que é “Onde os Fracos não têm Vez”? Sobre ganância? Sobre até onde as pessoas vão por dinheiro?

O personagem principal, Llewelyn, em dado momento ouve ao telefone uma oferta: o vilão não iria deixá-lo viver, mas, se devolvesse o dinheiro, deixaria a mulher do mocinho viver.

Bem, o acordo não vislumbrava nenhuma possibilidade de sobrevivência para o próprio Llewelyn – o psicopata foi categórico, Llewelyn TERIA que ser morto. Então Llewelyn não cede, compra a aposta. Mas a moça não estava em poder do vilão, e Llewelyn achou que: 1) era um blefe, 2) que ela, estando na casa da mãe em outra cidade, estaria a salvo, e 3) que ele poderia protegê-la. E também não tinha nenhuma garantia de que o psicopata iria cumprir sua palavra em relação à sua mulher – afinal, dá pra confiar num sujeito desses?

Então, a posição de Llewelyn neste ponto já não é exatamente de ganância, mas uma questão de tentar garantir sua sobrevivência – o psicopata já tinha o sentenciado a morte. Se num primeiro instante, ao procurar por um sobrevivente do tiroteio no deserto e levar o dinheiro para casa, Llewelyn agiu por ganância, já desde o momento em que voltou ao deserto para levar água ao traficante ferido ele mostrou outras motivações. E depois que os criminosos tiveram acesso à sua caminhonete e endereço, não tinha mais nada a fazer a não ser fugir – deveria ter contatado a polícia? Que garantia poderia ter de que iam agir corretamente com ele?

Esta questão da ganância me fez alugar o DVD de um filme que eu já não via há dez anos, o clássico “Contos da Lua Vaga” (1953), de Kenji Mizoguchi, este sim um filme sobre homens gananciosos que colocam seus relacionamentos e as vidas de suas mulheres em risco.

Mas em “Onde os Fracos não têm Vez”, a qualidade moral fica esvaziada. Até por que o vilão, o mais ambicioso e cruel de todos, vence.

Em outro filme dos Coen, o ótimo “Fargo”, perto do final a policial interpretada por Frances Mc Dormand conseguiu prender o seqüestrador – que acabara de executar seu parceiro e tentava se livrar do corpo jogando os pedaços num picador de madeira. E a policial sabia que pelo menos três outras pessoas tinham sido mortas pela dupla de criminosos. Enquanto dirige o carro, com o criminoso ferido na caçamba, ela fala a ele:

“Creio que devia ser o seu cúmplice lá no picador de madeira. E aquelas três pessoas em Brainerd. E por quê? Por um pouco de dinheiro? Há mais na vida do que isso, sabia? E aqui estamos nós, num lindo dia de sol…Bem… Eu não entendo isso…”

Falta algo assim para dar peso a “Onde os Fracos não têm Vez”. Ainda assim, um filme interessantíssimo.

Sobre o Flavio Pessoa: com os desenhos dele, há nessse blog adaptações para quadrinhos de Nelson Rodrigues  (os contos de “A Vida Como Ela É”). Clicar em

https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/quadrinhos-o-grande-viuvo

https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/quadrinhos-humilhacao-de-homem

Para o primeiro artigo sobre “Onde os Fracos não têm Vez”, só descer um pouco mais a página, ou voltar ao primeiro parágrafo deste texto, e clicar no link que ali se encontra.


Digressões minhas em cima de digressões dos irmãos Coen

agosto 23, 2008

Por Mauricio O. Dias – comoeueratrouxa

Digressão (do latim digressĭo, -ōnis) é o efeito de romper a continuidade de um discurso com uma mudança de tema intencionada. (extraído de pt.wikipedia.org/wiki/Digressão)

Esta semana assisti ao DVD “Onde os Fracos não têm Vez” (No Country for Old Men). Os irmãos Coen em geral mandam bem, especialmente quando voltam seu olhar para a América caipira (conferir “Arizona Nunca Mais” e “Fargo”. “Gosto de Sangue” também é sobre o mesmo universo, mas não o coloco no mesmo nível dos já citados). Então eram grandes as expectativas. Não lembro porque deixei de ver este filme no cinema, devia estar enrolado na época que passou, os Coen estão entre os poucos que faço questão de ver em tela grande.

Se você ainda não viu o filme e deseja assisti-lo, melhor parar de ler por aqui, pois eu vou contar detalhes da trama nos parágrafos abaixo.

Muito bem filmado. Mas o roteiro tem tanta gana de ser inovador que derrapa algumas vezes, especialmente nos 15 minutos finais. Mas depois falaremos disto, vamos em ordem cronológica.

Já nos primeiros dez minutos, há algumas falhas de lógica, uma delas absurda.

Primeiro, um policial que acabou de prender um homem (interpretado por Javier Bardem), fala ao telefone da delegacia enquanto o preso, algemado, aguarda num banco poucos metros atrás do policial. O preso ataca o policial por trás (não direi como) e consegue neutralizá-lo. Não venham me dizer que por ser um capiau ranger texano, o policial seria um ingênuo. Em lugar nenhum do mundo um policial que estivesse sozinho numa sala com um preso falaria ao telefone de costas para este mesmo preso, distraidamente. Se ele o considerou suspeito o suficiente para prendê-lo na estrada, não vai bobear enquanto este mesmo tipo aguarda atrás dele em condições de alcançá-lo.

Mas tudo bem, vamos deixar esta passar. A próxima, no entanto, é que é a mais dura; mas por ser sutil, passa despercebida:

O personagem principal, Llewelyn Moss, interpretado por Josh Brolin, está caçando num deserto no Texas quando se depara com quatro carros e corpos abandonados entre os restos de um tiroteio. Vai averiguar, descobre que tudo foi conseqüência de uma transação envolvendo drogas – um dos carros está cheio de heroína.

Ao abrir a porta de um dos carros, encontra um mexicano ferido, que lhe pede água. Ele diz não ter água ali, e sai, abandonando o ferido para ver se encontra o que seria “o último homem de pé”.

E de fato, não vemos nenhum cantil com Llewelyn.

Ele segue andando até achar o tal “último homem de pé”. Ao encontrá-lo descobre que agora ele já não está de pé, na verdade está tão morto quanto a múmia do Tutancâmon. E aos pés do cadáver, uma maleta que está, clichê dos clichês, abarrotada de dinheiro. Quase igual ao filme de um antigo parceiro dos Coen, “Um Plano Perfeito” de Sam Raimi, atual Sr. Homem-Aranha (Os Coen foram roteiristas do filme de Raimi, “Dois Heróis Bem Trapalhões” – Crimewave, 1985).

De noite, em seu trailer, Llewelyn lembra-se que abandonou o mexicano, enche um garrafão de água e vai para o deserto ajudá-lo.

Ou seja, ele é um bom homem, não disse que não tinha água apenas para negar ajuda a um ‘traficante mexicano’; disse porque era verdade. E é aí que entra a falta de lógica: naquele lugar arenoso, que só de assistir na TV já nos deixa com calor, alguém sairia para caçar e cruzar grandes distâncias a pé, sem levar uma reserva de água? Impossível!

Segue a trama, como já disse, bem filmada pra cacete: elenco uniformemente ótimo, sotaques caipiras engraçados e muito bem executados, e o único a atuar sem o sotaque, Javier Bardem, consegue ter uma interpretação ainda melhor do que o resto do elenco. Tommy Lee Jones e suas feições enrugadas também funcionam muito bem, dão uma verossimilhança ao personagem do velho xerife que um galã padrão de Hollywood jamais conseguiria.

Temos três personagens centrais, um perseguindo o outro, mas eles nunca se encontram. Bacana, sai da mesmice. Vendo, lembrei do “Três homens em conflito”, ou “O Bom, o Mau e o Feio”, do Sérgio Leone.

Aí entra o Woody Harrelson, já com cerca de uma hora de filme. Ok, uma fuga do padrão canônico do método para roteiristas – que estabelece que todos os personagens devem ser apresentados nos primeiros 10 – 15 minutos – é sempre bem vinda, traz uma bossa.

Desde o início do filme notamos que em nenhuma cena aparece um telefone celular. Diante de um carro incendiado o Xerife diz tratar-se de um modelo 1977. E o personagem Llewelyn, ferido, foge para o México. Depois tenta reingressar sem nenhum documento nos EUA, sendo momentaneamente detido pelo guarda de fronteira. Troca-se informações, Llewelyn revela que é veterano do Vietnã. Achei esquisito na hora, tanto a antiguidade do carro quanto um ator que deve ter quarenta anos dizendo que lutou em 1968. Depois, nos extras, se explica que o filme se passa no início da década de 80. Para quem assiste, não creio que fique claro. Não é algo fundamental, o filme não é pior por causa disso, mas esta informação tinha que ser passada mais claramente, era só mostrar de passagem um personagem vendo um noticiário de TV mostrando um fato marcante do ano em que a ação se passava (o atentado contra Reagan, em 1981; Guerra das Malvinas, em 1982; etc ). Claro, é um recurso manjado, mas depois da mala cheia de dinheiro encontrada por sorte, não seria este o problema. (P.S. Meu amigo Eduardo Soares lembrou-me que o personagem de Bardem, ao jogar um cara ou coroa diz que a moeda traz a inscrição ‘1958’, e “viajou por 22 anos até chegar ali”. Verdade, eu tinha esquecido, mas ainda assim é por demais sutil.) Ah, e já que falamos nos longínquos anos 80, uma curiosidade que só vai interessar a quem era adolescente àquela época: o já mencionado Josh Brolin – que interpreta Llewelyn Moss – , foi ator juvenil no filme “Os Goonies” (feito em 1985).

Mais pro final do filme temos o personagem principal morrendo sem que isso seja mostrado ao espectador. Vemos o corpo. E depois o mesmo recurso é ampliado exponencialmente com a esposa do personagem principal – não temos como ter certeza de que ela morreu ou viveu.

Desde que em 1960 Hitchcock matou a atriz principal no meio de Psicose, muitas inovações passaram a ser aceitas na narrativa – bom, inovações na narrativa vêm desde antes de D.W. Griffith (aliás, nada a ver com o resto do texto, mas ao conferir a grafia deste nome no imdb.com, descobri algo aterrador: ao escrever-se na janela de procura “Griffith”, não aparece de imediato o nome do criador da linguagem narrativa americana, mas o de um coadjuvante de “West Side Story”. Para se achar o pioneiro cineasta, tem-se que adicionar o D.W. Já revi muitas vezes o filme clássico de Billy Wilder “Crepúsculo dos Deuses” sobre o descarte que o cinema faz de seus ídolos antigos, mas não imaginei que o maior site americano de cinema seria tão ingrato com um nome tão importante para o seu país quanto foi Griffith).

Voltando, após tão longa digressão, à inovação dos 15 minutos finais de “Onde os Fracos não tem Vez”: para mim, ela não funciona. Pode haver gente que ache maravilhoso. Eu não. Talvez o erro seja meu.

Há inovações que funcionam, e há as que não funcionam. É sempre louvável tentar inovar, mas não se deve buscar a inovação como objetivo final. A pergunta que todo autor, em qualquer campo artístico, deveria se fazer ao pensar numa inovação, é: – Em que isto vai melhorar o que está sendo feito?

Também entram no que seria o terceiro ato do filme dois diálogos do Tommy Lee Jones com colegas homens da lei (ainda) mais velhos que ele – os quais nunca tinham aparecido antes na trama. São digressões interessantes, nos fazem conhecer um pouco mais do personagem de Tommy Lee Jones – Rita Lee também tinha Jones como segundo sobrenome (ver pt.wikipedia.org/wiki/Rita_Lee), mas creio que não há parentesco. Mas o fato é que não há um preparo dramático para a entrada em cena destes personagens. A impressão é que estes velhos homens da lei deveriam ser muito mais importantes no livro (o qual não li) que originou o filme, e optou-se por manter uma fala de cada um deles após cortarem toda a essência.

E o final do filme, com o acidente de carro, é uma bobagem do tipo daquelas que David Lynch costuma fazer em seus filmes: buscar a estranheza surreal como valor artístico per se. Não leva a nada, não diz nada sobre o personagem, não é nada. Uma pena, pois a primeira hora e meia do filme é eletrizante, e vale o ingresso ou aluguel do DVD.

Para quem aturar mais meu blá-blá-blá sobre este filme, recomendo o link

https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/2008/08/30/um-pouco-mais-sobre-onde-os-fracos-nao-tem-vez