Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971)

orange5Por Mauricio Dias – comoeueratrouxa

     Antes de mais nada, devemos falar de curiosos aspectos lingüísticos de “Laranja Mecânica”. Ao final do livro de Anthony Burguess encontramos um glossário para a gíria “nadsat” falada pelos personagens. Um estudo mostra que a grande maioria das expressões deriva do russo. Por exemplo: Baboochka, do russo Babooshka (avó) ; Devotchka, do russo Devochka (garota). O livro foi escrito no auge da guerra fria e Burguess provavelmente imaginou ou brincou com a possibilidade de que a grande polarização econômica entre EUA e URSS iria gerar no futuro efeitos culturais e lingüísticos na Inglaterra. Outras expressões do glossário “nadsat” são gírias, trocadilhos, novos sentidos para velhas palavras, etc. O título original do livro, “A Clockwork Orange” não significa apenas a tradução literal – Laranja Mecânica. Uma das expressões encontradas no glossário com um novo significado é justamente orange, que além de laranja passa a designar também “homem”. Isto se dá por um trocadilho feito com a semelhança fonética de orange com orangutan (orangotango, primata altamente desenvolvido, e como o gorila e o chimpanzé, “parente” do homem). Ou seja, temos aí “Homem Mecânico”, que é o que Alex se torna após o condicionamento, um ser programado, sem poder de escolha. Outra versão seria de que o termo vem de uma velha expressão “Cockney” que designaria tipos estranhos (havia a expressão tão esquisito quanto uma Laranja Mecânica – “as queer as a clockwork orange”); há certa ironia em dizer que algo orgânico possa ter mecanismos e engrenagens.

     Alex De Large, o nome do personagem principal, além de ser anagrama de Alexandre, o Grande, tem um significado extra: A-lex, do latim sem lei. Ele é um ser guiado por seus instintos e interesses, desprovido de moral ou consciência.

     Alex é um amante de Beethoven, tem fantasias de dominação e poder e vê o crime como uma forma de expressão artística. Quando atacam, Alex e seus “droogs”(amigos) estão mascarados (alguma semelhança com o teatro clássico grego?) e a violência é estilizada e teatral, acompanhada por Gene Kelly e números de dança.

     Em oposição, seu ambiente familiar é totalmente “desinteressante”. Ele mora no “bloco municipal linear de apartamentos 18A norte”(1), um edifício cinzento de concreto com elevadores que não funcionam e cercado por paredes-murais com pichações no estilo ‘socialismo-realismo’. Seus pais englobam todos os estereótipos da classe trabalhadora britânica : estúpidos, simplórios, sem ambições, passam o tempo livre vendo televisão ou lendo tablóides sensacionalistas. O apartamento é decorado com péssimo gosto e o relacionamento entre eles próprios é caricatural. Já o quarto de Alex é “estiloso” e mostra um gosto por arte.

     Alex mente para seus pais e seu vigia-escolar. Quando é preso por assassinato, ele tenta jogar a culpa em seus companheiros. Uma vez preso, adota o comportamento de um prisioneiro modelo, bajulando o capelão e fingindo estudar os ensinamentos da Bíblia (e aí secretamente ele encontra mais material para suas fantasias sádicas e sexuais). Durante o processo de condicionamento a que é submetido, Alex tenta manipular os cientistas alegando já estar “curado” da violência, e que não há mais razão para seguir com o doloroso tratamento Ludovico.

     Mas quando em posição superior ele assume um ar debochado. Ao final do filme – após sua tentativa de suicídio – já no hospital, Alex se encontra com os membros imobilizados. O ministro do interior o visita e se oferece para ajudá-lo com a refeição. Alex simplesmente abre a boca como um filhote de pássaro a espera de comida. O ministro o serve, selando assim a cumplicidade que irá se estabelecer nesse momento em que Alex é dominante, pois, para limpar sua própria imagem, o governo precisa dele ao seu lado.

      Kubrick foi acusado de exaltar a violência, ou até deliberadamente incitar à ela. Numa entrevista para o New York Times, ele se defende:“Eu estou interessado na brutal e violenta natureza do homem porque é um retrato verdadeiro dele. E qualquer tentativa de criar instituições sociais baseadas em uma falsa visão da natureza humana está provavelmente condenada a falhar A idéia que restrições sociais são totalmente negativas é baseada numa utópica e irrealista visão do homem.” (2) Sem dúvida, a idéia de Kubrick do homem livre de inibições vai totalmente contra a idéia do “bom selvagem” de Rosseau; mas ele também não espera que o “adestramento” do homem vá ser uma grande solução. Kubrick, na sua visão, mostra que é vã a esperança humana de salvação pelas instituições sociais, mostrando o “selvagem” (Alex) em seus encontros com personagens que representam outros arquétipos:

     O progressista é representado pelo escritor Frank Alexander. Alex e seus droogs o ludibriam a abrir a porta tocando em sua compaixão com uma estória sobre um acidente na estrada, e quando dentro da casa, espancam Frank e estupram sua mulher. Significativamente, Alex destrói o estúdio de Frank, espalhando suas folhas já datilografadas e jogando a máquina de escrever no chão (Kubrick não previu a invasão do computador pessoal) e derruba as prateleiras com livros, que representam o conhecimento acumulado pelo homem. Quando mais tarde o círculo se fecha e Alex reencontra Frank, paralítico devido ao espancamento, os dois não se reconhecem (Alex estava mascarado com um nariz fálico na ocasião da invasão; e para Alex, Frank era apenas um dos muitos que brutalizou, alguém de quem ele não tem como lembrar.). Alex está em poder de Frank, seu enfermeiro musculoso e colegas de partido, e só será reconhecido por Frank ao cantar na banheira Singin’ In The Rain (a mesma música cantada por ele durante o espancamento). Como o progressista reage? Ele droga Alex e o submete a tortura, deliciando-se com seus gritos, mostrando que por trás do coração cheio de preocupações sociais há a mesma brutalidade primitiva de Alex.

     O moralista é representado pelo capelão da prisão; ele é ludibriado por Alex, que tenta convencê-lo de seu amor pela Bíblia para obter privilégios. O capelão percebe a hipocrisia do condicionamento, e que isto não causará mudança moral em Alex. Mas tem que se calar diante da explicação do ministro do interior:

“-Padre, essas são sutilezas. Nós não estamos preocupados com motivos, nem com os altos valores éticos, nós estamos preocupados apenas em cortar a taxa de criminalidade e em aliviar a medonha lotação em nossas prisões. Ele será seu verdadeiro Cristão(3)

     Personagens cínicos que parecem dividir a gestalt de Kubrick são os guardas da prisão. Eles podem ver a dissimulação de Alex ao se oferecer como cobaia no tratamento Ludovico – na verdade, Alex espera obter benefícios em troca – mas os carcereiros sabem não ter poder suficiente para impedir que ele seja a cobaia no experimento.

     Outro personagem representativo da visão cinzenta da Inglaterra futurista é o guarda-escolar (uma mistura de vigia de liberdade condicional e caça-gazeteiros), Mr. Deltoid, que não parece estar muito interessado no bem estar de Alex. O tratamento falsamente carinhoso que dispensa a Alex (só se dirige a ele como : “Alex boy”.) contrasta com algumas ameaças veladas. Quando Alex é preso por assassinato, Mr. Deltoid mal pode esconder sua alegria pelo fato do jovem agora poder ser finalmente severamente punido. O policial lhe oferece Alex em mãos para ser castigado fisicamente por tê-lo feito perder tempo e energia inutilmente, uma vez que o delinqüente não conseguiu escapar da cadeia apesar de todos os “esforços” dele, Mr. Deltoid (talvez um trocadilho unindo o músculo do ombro e a célebre expressão “The long arm of the law“(4)).

      O ministro não tem preocupações verdadeiras com a sociedade ou com os prisioneiros. Ele vê o tratamento Ludovico como uma ferramenta política: “- Logo nós podemos precisar de todo nosso espaço de prisão para os que falam mal do governo.” (5)

     Mas após todos os percalços Alex é curado do tratamento e começa uma nova carreira à serviço do governo – delinqüência num nível bem mais elevado e sutil do que o que ele está acostumado a praticar. Está claro pelas cenas com suas fantasias de sexo e poder que ele voltou a ser o mesmo sociopata de antes, só que agora com mais poder. É emblemática a fantasia final : Alex correndo atrás de uma garota nua e sendo aplaudido por figuras em trajes vitorianos. Seria o símbolo da permissão da alta sociedade para seu comportamento libertino?

1 – Do original em inglês : ‘He lives in “municipal flat block 18A linear north”.’ O estilo ‘socialismo-realismo’ é explicado por Banks, Gordon em seu ensaio ‘Kubrick’s Psychopaths: Society and Human Nature in the Films of Stanley Kubrick‘: “We imagine such a world to be the failed socialism of the future Britain toward which policies of the 1960s Labor Party were leading” (“Nós imaginamos este mundo como fruto de um socialismo falho na futura Inglaterra em razão da liderança política do Partido Trabalhista nos anos 60.”)

2 – Do original em inglês : “I’m interested in the brutal and violent nature of man because it’s a true picture of him. And any attempt to create social institution on a false view of the nature of man is probably doomed to failure The idea that social restraints are all bad is based on a utopian and unrealistic vision of man.”

3- Do original em inglês : “- Padre, these are subtleties. We’re not concerned with motives, with the highter ethics, we’re concerned only with cutting down crime and with relieving the ghastly congestion in our prisons. He will be your true Christian

4 “O longo braço da lei”.

5 – Do original em inglês :“Soon we may need all our prision space for political offenders.”

6 Responses to Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971)

  1. […] Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) […]

  2. Carlos Felipe disse:

    Bem interessante esta análise.

  3. Andreia Laureano de Moraes disse:

    Era exatamente o que eu procurava ler sobre o filme. Gostei muito.

  4. enigmateo disse:

    Muito interessante sua análise! Ps.: haha nem me lembrava que meu perfil era a capa do filme kkkkkkk hiper-coincidência.

  5. Sânghela Lima disse:

    Já li várias análises do filme. Essa foi uma das que mais gostei.

  6. Swellen disse:

    Muito boa essa resenha. Digo que é melhor que a obra. Você viu filosofia onde só vi escritas de uma mente sensacionalista.

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