Filhos Anônimos (teatro)

Na coluna à direita da tela há links para outros textos, ver nas categorias ‘teatro’ e ‘mais_teatro’. Se copiar um texto ou um trecho, dê crédito ao autor.

Autor – Mauricio Dias

Filhos Anônimos  (2006)

Um Psiquiatra, Jesus, Hamlet, Isaac, Zeus, sentados em semi-círculo.

O Psiquiatra dirige-se à platéia.

Psiquiatra

Vocês já ouviram falar dos alcoólatras anônimos. São grupos de reunião onde pessoas que tiveram experiências ruins com a bebida juntam-se para suporte mútuo no combate ao vício. Eles relatam seus problemas uns aos outros, e assim, criam uma identidade em comum, para em grupo tentar combater um problema que individualmente talvez não tivessem força para enfrentar. (pausa) Foi pensando nesta experiência bem sucedida que eu, Samuel Eisenberg, psiquiatra, resolvi criar o Filhos Anônimos, o FA. Aqui, pessoas que tiveram experiências traumáticas com seus pais se reúnem para falar de seus problemas. (Tira algumas fichas de cartolina do bolso, reordena-as, vira-se pros outros) Vamos começar a sessão. Você, pode-se levantar e dizer seu nome?

Jesus

(levanta-se)

Meu nome é Jesus, mas podem me chamar de Cristo.

Silêncio. Instantes.

Psiquiatra

Vamos saudar o nosso colega, como combinamos?

Hamlet, Isaac, Zeus

Oi, Jesus!

Psiquiatra

Jesus, o que o traz aqui?

Jesus

Meu pai é o Deus único. O criador de tudo.

Zeus

Protesto! Há vários deuses e eu sou o maior deles.

Psiquiatra

Calma, Zeus! Quando chegar a sua hora você fala. Agora devemos escutar o depoimento do colega. Prossiga, Jesus.

Jesus

E meu pai… (pausa, se emociona) … ele me mandou ser crucificado. (mostra as chagas das mãos) Apanhei, levei chicotadas, fiquei três horas pregado numa madeira.

Psiquiatra

E você não consegue perdoar seu pai por isso?

Jesus

Perdoar eu perdôo. Pô, eu sou Jesus, to aqui pra perdoar, morou? Mas eu não entendo ‘porquê’ ele fez isso. Em vez de eu ficar lá, com dois pregos na mão, não seria melhor estar tratando de leprosos ou curando cegos, alguma coisa assim? Não é mais produtivo?

Psiquiatra

Talvez Hamlet tenha algo em sua experiência de vida que de alguma forma se assemelhe a este seu problema.

Hamlet

Bom, Eu sou Hamlet, príncipe herdeiro da Dinamarca. Meu pai, já depois de morto, veio me mandar matar meu tio.

Psiquiatra

Você crê ter visões do seu falecido pai…

Hamlet

Não sou só eu não. Os guardas do palácio também viram, antes de mim. Foram eles que me chamaram. (sorri) Eu tenho problemas com minha família, mas maluco não sou. Não tenho visões, nem saio por aí dizendo que sou Jesus Cristo.

Jesus

Você está insinuando que eu sou maluco?

Hamlet

Não, não… Seu pai é (t) o Deus onipresente e sua mãe… era virgem! (vira-se pra platéia e faz uma cara de “me engana que eu gosto!”)

Jesus

(levanta-se)

Em verdade, em verdade vos digo…

Psiquiatra

(intervém)

Por favor, Jesus, depois você dá sua opinião. Vamos deixar Hamlet terminar o relato dele.

Jesus

(senta-se)

O pensamento dos materialistas científicos, sempre querendo calar a religião…

O Psiquiatra faz um gesto de ‘prossiga’ para Hamlet.

Hamlet

O fantasma do meu pai apareceu e me disse que meu tio, (t)irmão dele, foi quem matou o ‘véio’. Porque depois da morte do meu pai, meu tio casou com minha mãe. Dá pra eu ser normal numa família dessa? Quer dizer, os dois já tinham dividido o útero da mãe (t)deles. Depois foram dividir o útero da (t)minha mãe. Acho que meu tio tinha inveja do meu pai, bastava o ‘véio’ passar num canal vaginal, meu tio tinha que passar também. E minha mãe foi na onda, deu pros dois. (pausa) Quer dizer, nem todo mundo tem a sorte de ser filho de uma virgem…

Jesus

Escuta aqui, não fui quem disse que minha mãe era virgem. Você já leu os evangelhos?

Psiquiatra

Hamlet, eu estou notando uma certa hostilidade de sua parte. Este não é o nosso objetivo aqui, trata-se de grupo de suporte mútuo. O obstáculo que temos de enfrentar demanda união. (Gesto: com as mãos em concha, encaixa os dedos de uma mão entre os da outra) Talvez Isaac queira dividir sua experiência conosco.

Isaac

Bom, meu pai ia me sacrificar. Passar a faca no meu pescoço e me sangrar que nem um porco. Na última hora, as coisas mudaram, eu fui poupado. Mas o fato é: meu pai ia me passar a faca no pescoço, só porque alguém mandou ele fazer isso.

Hamlet

E quem foi que mandou ele fazer isso?

Isaac (aponta pra Jesus)

O pai dele.

Jesus

Ele mandou o próprio filho pra cruz, o que você esperava?

Isaac

Mas na última hora ele mandou um anjo com um carneiro e falou pro meu pai matar o carneiro em vez de mim.

Hamlet

O anjo foi lá levar o carneiro? É ‘delivery’?

Isaac

Ele não (t) ‘trabalha’ com isso, foi uma entrega especial, única. Tá achando que é um moto-boy? Ele é um anjo, é muito ocupado.

Psiquiatra

Hamlet, por favor, estamos diante de um novo caminho na estória do nosso Isaac.

Hamlet

Essa estória tem cinco mil anos de idade, todo mundo já leu. Só você pra achar que esse é um ‘novo’ caminho…

Psiquiatra

Mas só agora Isaac revelou por si próprio este fato. Ele deu um passo importante no caminho do equilíbrio. Recapitulemos então, Isaac: o fato é que, tanto você, quanto Jesus não morreram.

Jesus

Eu morri.

Psiquiatra

(estranha, re-observa as fichas em seu colo, anota algo)

Ah, sim. Mas aqui diz que depois ressuscitou.

Jesus

Correto!

Psiquiatra

Em ambos os casos vocês puderam seguir com suas vidas.

Os dois confirmam com a cabeça.

Psiquiatra

Então esta experiência de quase-morte, ou morte e ressurreição, no caso de Jesus, foi uma etapa de aprendizado. É parte da atividade paterna, criar oportunidades de aprendizado para o filho.

Isaac

Pera aí… Sabe lá o que é seu pai te levar pra uma mesa de pedra e puxar uma faca desse tamanho? Que aprendizado é esse? Pera lá… Sabe o Alexandre… o loirinho de saia que veio semana passada?

Psiquiatra

(reordena as fichas, procurando algo)

Ah, sim… Ele não veio hoje?

Hamlet

(entediado)

Ele ia invadir o Paquistão. Só volta semana que vem.

Jesus

Se eu soubesse que ele ia praqueles lados, ia pedir pra ele trazer mirra do free-shop.

Isaac

Pois então… O pai do Alexandre, o ‘seu’ Felipão, mandou chamar Aristóteles pra dar aula pro filho. Isso sim é criar oportunidade de aprendizado. Não é ter aula com um pilantra com mestrado na UFRJ, é A-RIS-TÓ-TE-LES. Enquanto isso meu pai me aponta uma faca no pescoço. Quer comparar? Nem os Bórgia puxavam faca um pro outro.

Psiquiatra

Você tem que entender que em Israel nessa época não tinha escolas, eram comunidades agrícolas, noventa e oito por cento da população analfabeta… Era uma outra realidade… (pausa) Vamos nos ater ao tema central. Já que Isaac culpa seu pai, por concordar com este sacrifício, nós vamos reencenar este ato, e você irá interpretar o papel do seu pai e se colocar na posição dele.

Isaac

E quem vai fazer o papel de Deus?

Psiquiatra

Eu vou ser Deus.

Hamlet

Depois eu é que sou egocêntrico…

Zeus

(lixando as unhas com um ‘raio’ de plástico de meio metro)

Eu devia ser Deus. Quer dizer,(t)eu sou!

Psiquiatra (ignorando, dá uma olhada nas anotações)

Isaac, agora você é Abraão, e quero que pense em mim como o Deus, a quem você tanto teme. (pausa, bate as palmas da mão uma vez, com força) Abraão, aqui é o teu Deus. Quero que pegue teu único filho e vá à terra de Moriá, onde o ofercecerás em holocausto sobre um dos montes que eu indicar.

Isaac

Senhor, posso pedir-lhe algo?

Psiquiatra

O que é?

Isaac

O holocausto não pode ser um boi ou um carneiro?

Psiquiatra

Você não ouviu o que eu te pedi?

Isaac

Que tal cinco bois? É uma oferenda muito melhor. Esse garoto é magro, e tem um problema de gases, não vai dar um bom holocausto.

Psiquiatra

(TOM ENÉRGICO)

Está recusando uma ordem minha?

Isaac

Quem sou eu pra fazer isso? Quero apenas oferecer algo que será vantajoso para ambos.

Psiquiatra

Minha escolha já foi feita.

Isaac

Senhor, e se eu, Abrãao me oferecesse em holocausto em lugar do meu filho? Eu vou ao lugar indicado, faço uma oração e passo a faca em meu pescoço.

Psiquiatra

É Isaac quem eu quero.

Isaac

Tudo bem, o Senhor é o chefão, Il Capo di Tutti Capi, não vou contradizê-lo. Mas eu tinha que ao menos tentar trocar o sacrifício, era minha obrigação como pai. O Senhor é onisciente, e vai se lembrar do GÊNESIS 18, dos versículos 23 até ao 33. Eu, humildemente, apelei junto ao Senhor pelos habitantes de Sodoma e Gomorra.

Jesus abre uma Bíblia, lê o GÊNESIS 18:23 até 18:33.

Isaac

Se eu, Abrão, intercedi por eles, que eram uns degenerados, era justo que apelasse pelo meu único filho.

Psiquiatra

E quando você pediu pelos de Sodoma e Gomorra, isto deu algum resultado?

Isaac

A vontade de Deus é soberana, mas eu tenho que pelo menos fazer a minha parte. Se eu semear um trigal e Deus mandar uma enchente ou uma seca, o trigo não irá crescer. Mas se eu não semear, aí é que não nasce nada. (pausa) Assim, intercedi pelo meu filho. Se o Senhor não quer abrir mão de Isaac, ninguém pode me culpar por não ter ao menos tentado.

Psiquiatra

E você teme que seu filho não o irá perdoar se você não tentar salvá-lo?

Isaac

Pra falar a verdade, neste momento eu gostaria de entender por que o Senhor me pede isto. Mas tem muita coisa em minha cabeça: eu vou matar meu filho, o que não é agradável; e depois como vou contar pra minha mulher? (faz uma voz de mulher velha) “ABRAÃO, CADÊ O MENINO? VOCÊ DISSE QUE IA LEVÁ-LO NUM PASSEIO, CADÊ O GAROTO?”

Psiquiatra

OK, a nossa encenação pode terminar. Isaac, já entendi o seu ponto de vista, você tem um bom argumento. Mas você tem que entender que a paternidade não é uma tarefa fácil. Todos estão sujeitos a falhas, você pode garantir que não vai errar com seus filhos?

Jesus

Ele abençoou o filho errado, achando que era o outro.

Isaac

Mas eu fui enganado!

Psiquiatra

Só quero deixar claro que todo pai comete erros. E o filho muitas vezes não aceita que seu pai não corresponda ao ideal imaginado.

Isaac

Erro é uma coisa, te ameaçar com uma faca…

Zeus

E você acha que isso é tão terrível? Meu pai devorava os próprios filhos, com medo de que um deles viesse a tomar o lugar dele.

Hamlet

Que coisa horrível! E como você escapou de ser comido?

Zeus

Eu o matei… e tomei o lugar dele!

Jesus

Então o medo dele não era infundado.

Zeus

(esnobando)

Não discuto com monoteístas.

Psiquiatra

Mas ele tem razão. O medo do seu pai acabou se provando pertinente.

Zeus

Se ele tinha medo que um filho tomasse o lugar dele, tinha mil coisas que ele podia fazer: usar camisinha, dar anticoncepcionais pra minha mãe, gozar fora. Não precisava comer todos os filhos, um após o outro.

Hamlet

Seus irmãos saíam da barriga da mamãe e já iam direto pra barriga do papai…

Os outros riem.

Zeus

Ousa fazer gracejo com a morte dos meus irmãos? Vou fulminá-lo com um raio!

Psiquiatra

Não, Zeus, por favor! Eu acabei de reformar o consultório. (pausa) Hamlet, foi muito insensível da sua parte fazer uma piada sobre a experiência do seu colega. Acho que você devia se desculpar.

Hamlet

Desculpe, grego.

Zeus cruza os braços e vira a cara, emburrado.

Psiquiatra

Eu acho melhor encerrarmos a sessão de hoje. Nos encontraremos neste mesmo horário na semana que vem.

Isaac

(se levantando)

Vamos pra um bar continuar a conversa?

Hamlet

(se levantando)

Aproveita que Jesus tá aí, tem vinho de graça pra todo mundo.

Eles vão saindo, as luzes se apagam.

—-

No alto da página, na coluna à direita da tela há links para outros textos, ver nas categorias ‘teatro’ e ‘mais_teatro’.

Outro texto no link https://comoeueratrouxaaos18anos.wordpress.com/2007/08/19/triangulo-ii

2 Responses to Filhos Anônimos (teatro)

  1. joana disse:

    muito criativo, dá para ver que quem escreveu entende de terapia.

Deixe um comentário