Sobre listas de cinema

Trechos escritos por mim em uma troca de emails entre velhos amigos que ocorreu em dezembro de 2022, quando tivemos ciência da lista dos melhores filmes da revista Sigh & Sound ( https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/greatest-films-all-time ).

‘O Iluminado’ x ‘Laranja Mecânica’

Esta argumentação foi elaborada pelo fato de ‘O Iluminado’ – ‘The Shining‘ – ser o número 88 da lista, enquanto ‘Laranja Mecânica’ (ambos de Kubrick), está bem mais abaixo, na posição 243. Eu acho que sempre que vc tem o sobrenatural como ‘leitmotiv‘, vc tende a ir pra um gênero menor da dramaturgia. Vc pode dizer “Ah, mas tem o fantasma do pai em Hamlet, e as bruxas em Macbeth…” , mas está se falando de peças escritas em 1602, o sobrenatural era uma realidade na mente das pessoas na época. E mesmo nestes dramas, o sobrenatural aparece como desencadeador da trama, mas o cerne são tramas de vingança e cobiça. Ninguém dirá que uma adaptação canônica de Hamlet é um filme de terror, porque tem um fantasma. ‘O Iluminado’ é um filme de terror recheado de fantasmas – muito bem feito, estiloso – , mas não vai além. E as alucinações NÃO são a loucura do escritor, todos os outros personagens os vêem, o garoto tinha clarevidência (outro recurso ao sobrenatural na trama) e já soube do quarto 237 assim que chegou lá. Aquela história de que rola uma denúncia sutil sobre como a História ignorou as atrocidades cometidas contra os índios é balela pra enganar trouxa. ‘O Iluminado’ é de 1980, John Ford já tinha filmado ‘Cheyenne Autumn‘ em 1964, Penn dirigiu ‘Little Big Man‘ em 1970, Brando ao ganhar o Oscar por ‘Godfather‘ mandou uma falsa índia recusar o prêmio em protesto pelo tratamento dados aos índios no cinema, Altman dirigiu em 1976 ‘Buffalo Bill and the Indians‘. Então, quando ‘O Iluminado’ foi lançado, não havia mais necessidade NENHUMA de se fazer uma ‘denúncia sutil’ sobre o tópico, ele já estava escancarado no mainstream do cinema há mais de uma década – fora músicas, livros, peças, etc. Já ‘Laranja Mecânica’ é sobre um tema a meu ver fundamental, o controle social de indivíduos indesejáveis. Não sou de passar pano, o lugar de um tipo como Alex é na cadeia. Mas, a partir do momento que se recorre á medicina para impedir o sujeito de exercer seu livre-arbítrio (seja por lobotomia, choque elétrico, tratamento crônico com tranquilizantes), aí aproxima-se do regime totalitário. E ‘Laranja Mecânica’ foi lançado no mesmo ano em que ‘THX 1138’ e quatro anos antes de ‘O Estranho no Ninho’, que também centram – por diferentes caminhos – no tópico. Ou seja, ‘Laranja Mecânica’ é pioneiro num tópico importante, e ‘O Iluminado’, não. Além disso, ‘Laranja Mecânica’ traz uma série de inovações e brincadeiras narrativas (a famosa cena do ménage acelerado) que vão MUITO além do (ótimo) uso do steadycam em ‘O Iluminado’. E, no entanto, ‘O Iluminado’ está na lista dos 100 mais da Sight and Sound e ‘Laranja Mecânica’, não. Por quê? Ausência de algum personagem feminino forte. Em ‘O Iluminado’, Shelley Duvall, acossada pelo patriarcado opressor falocrata, usa de diferentes armas – um bastão de basebol na escada, uma faca no quarto – pra defender a si própria e a seu filho dotado de uma ‘sensibilidade especial’. Enquanto em ‘Laranja Mecânica’ a mãe de Alex é uma passiva dona de casa, e e o próprio Alex estupra uma mulher e mata outra com um enorme pênis de plástico (literalmente a imagem-pesadelo para qualquer feminista). Olha, eu tenho certeza de que este trecho em negrito aí em cima, com estas palavras ou outras sinônimas, rolou em algumas trocas de emails entre As juradAs antes da votação. E ficou definido que A CAUSA é mais importante que desvios de pensamento pequenos-burgueses. Na lista dos filmes que foram excluídos da lista no intervalo de um ano constam ‘O Sétimo Selo’, ‘Touro Indomável’, ‘Rio Bravo’ e ‘Morangos Silvestres’. O motivo pra este filme da Akerman ter sido alçado ao primeiro lugar é simplesmente um conluio feminista – eles meio que admitem isto no primeiro parágrafo de https://www.bfi.org.uk/film/00638537-48d0-5522-9502-4e5ba0166194/jeanne-dielman-23-quai-du-commerce-1080-bruxelles

Isso pra mim é de uma mediocridade absoluta: as mulheres do júri combinam de votarem todas no mesmo filme, para dar peso a ele. Aliás, só isto explica um filme apenas interessante como ‘O Piano’ estar na lista.Numa outra troca de emails comentei com um querido amigo dos tempos de faculdade) que ‘La Cienaga‘ (O Pântano) foi escolhido numa eleição lá feita como “o melhor filme argentino já feito” ( O ranking está aqui https://encuestadecineargentino.com/top-100/ ) O filme não é ruim, de forma alguma, mas pra ele ser “o melhor filme” de todos os tempos de um país com uma cinematografia constante, é um pouco demais. Aliás, ‘La Cienaga‘ ocupa o número 136 da lista da Sigh & Sound. Desconfio que estas premiações acima, assim como a da Sigh & Sound, ocorram por se tratarem de obras feitas por uma mulher e ter como personagens centrais personagens femininos. E já incluo o comentário irônico do amigo dos tempos de faculdade* na resposta.

A saber: * – “Mas não seria mais fácil a gangue de juradas femens ter votado só em filmes dirigidos por mulheres. Por que votar em qualquer filme do Kubrick?”

Os júris não são compostos exclusivamente por mulheres, e nem necessariamente todas as mulheres chamadas a votar irão adotar o comportamento de manada. Numa votação feita livremente com mais de cinco cabeças os votos tendem a não ser homogêneos, há aquelas obras de referência que todos reconhecem, mas os votos tendem a se pulverizar em diferentes direções. Se alguém, ou um grupo de interesse, consegue mobilizar 40 – 50% do corpo de votantes em uma direção, provavelmente obterá os resultados que deseja, ainda que não seja unânime. Este filme do Jordan Peele – ver link – é um bom thriller, e nada mais que isso: https://www.bfi.org.uk/film/81a56239-4e69-56b1-b2f0-128204576ae9/get-out

Este, assim como ‘Moonlight‘ (2016) – o número 60 da lista – , estar na lista dos 100 melhores, e nenhum dos irmãos Coen, Paul Thomas Anderson ou Tarantino estar lá, é uma declaração de más intenções.

Deixe um comentário